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ENTREVISTA COM JEAN BAUDRILLARD
Publicado na
Revista Cult,
edição 95, de setembro de 2005.
 


O sociólogo Jean Baudrillard fala da
banalização como doença do mundo
e afirma que "o Brasil,
não tanto Lula,
permanece como uma esperança".
 
Por
Fernando Eichenberg
 
O pensador francês Jean Baudrillard, aos 76 anos, é um elétron livre no cenário intelectual contemporâneo. Crítico das análises ideológicas e do que chama de didatismo pseudo-político dos intelectuais de seu tempo, ele assume uma solitária condição de pária entre os representantes da French Theory, sem por isso sentir-se menos comprometido com as coisas do mundo.
 
Tradutor de Karl Marx, Friederich Hölderlin e Bertold Brecht, influenciado por Friedrich Nietzsche, Roland Barthes, Georges Bataille e Antonin Artaud, o pensador passou pela patafísica do dadaísta Alfred Jarry até se aventurar a partir do final dos anos 1970 nas trilhas que o levariam a um pensamento "transpolítico", fragmentário e atraído pela radicalidade. Para se manter como um ativo pensador diante dos absurdos do cotidiano e da irrealidade das coisas, sua inspiração vem do célebre personagem do clássico Bartleby, o escrivão - uma história de Wall Street, de Herman Melville. "Em relação ao mundo político e intelectual, minha solução é um pouco no estilo Bartleby, viver numa espécie de reserva mental, num universo paralelo. Não é uma solução ou uma estratégia da qual se possa fazer uma moral, mas uma tática existencial. Há um mundo selvagem que escapa a essa espécie de intoxicação universal", diz ele.
 
Adulado no exterior, seja nos Estados Unidos, Japão ou Brasil, e praticamente ignorado no seu país, recentemente ele teve sua biografia intelectual destacada na França pela prestigiada coleção editorial Cahier de L'Herne. Já a editora Sens & Tonka lançou a série Jean Baudrillard, uma reedição de dez de suas obras mais significativas, e a Galilée tirou do prelo mais um tomo de seu diário de aforismos, Cool Memories V - 2000-2004. Em outubro, o viajante pensador estará mais uma vez no Brasil, para participar, em Porto Alegre, de debates junto ao colega francês Michel Maffesoli. A seguir, os principais trechos da entrevista de Jean Baudrillard à CULT, concedida no seu apartamento-refúgio parisiense, próximo ao belo Jardim de Luxemburgo.
 
CULT - Em sua vida intelectual, o senhor presenciou alguns dos mais importantes movimentos surgidos na França no século passado, como a moda existencialista, a chegada dos estruturalistas, Roland Barthes, Michel Foucault e Gilles Deleuze, Maio de 68, chegando aos os "Novos Filósofos". Uma história intelectual do século 20?
 
Jean Baudrillard
- Eu era jovem. Mas comecei com Georges Bataille, Antonin Artaud, no fim dos anos 1940. Depois, Sartre, certamente. Teoricamente e conceitualmente, foi sobretudo Sartre. Nos anos 1950, eu era bastante entrincheirado, não era parisiense nem nada, ficava no meu canto. Havia me aproximado dos patafísicos, no fim do liceu, quando estava em Reims. Começou por esse lado, algo patafísico, poético. E depois tudo isso se politizou com Sartre, a guerra da Argélia. Passou-se a um nível bem mais teórico com Barthes, a semiologia. Houve o Situacionismo, cheguei à universidade de Nanterre nesse momento, e depois veio 1968. Eu não me despolitizei, mas me "transpolitizei". Minha reflexão política mudou, e no caso da escrita também. Houve os anos 1970, de Marx-Freud-Nietzsche. Mas, apesar de tudo, me encontrava um pouco só.
 
CULT - Hoje, a produção cultural francesa é vista como um estado de decadência. Essa visão é correta?
 
J.B. - Houve um apogeu, mas o canto desapareceu, o canto diferencial, enérgico, magnético, que vinha dos anos 1960 até os anos 1980. Desde o começo dos anos 1980, senti um buraco, efetivamente, por causa da desaparição física de um grande número de pensadores, mas sobretudo por uma forma de revisionismo. Houve uma radicalidade muito diferente, da qual eu fazia parte sem, no entanto, pertencer ao mesmo grupo. Houve um núcleo, que talvez já fosse o mesmo em relação aos anos 1930, epigônico em relação a Nietzsche. Mas havia algo de bastante específico, e essa singularidade se diluiu quando chegaram os Novos Filósofos - André Glucksmann e os outros -, que retomaram uma ideologia moral e humanista. O pensamento francês, ainda hoje, tem pouca influência e impacto no mundo, e é sempre a mesma equipe: Foucault, Deleuze, Lacan, eu.
 
Num dado momento, me lembro que no Brasil e na Argentina ocorriam coisas bem mais interessantes do que aqui, mas todo mundo lá tinha os olhos virados para Paris. Acreditávamos que a teoria estava relativamente adiante, por antecipação, nos anos 1970, e desde então, na minha opinião, ela está em atraso. Mas em relação a quê? Essa é a questão. Não sabemos o que podemos antecipar. O pensamento ideológico, moral, neopolítico como se trama aqui não é uma antecipação. Não se trata de um julgamento de valor absoluto. Tenho mais cumplicidade, hoje, com pessoas como Peter Sloterdjik, Giorgio Agamben. Não creio que a situação atual do pensamento francês tem a ver com o destino político da França.
 
CULT - Onde está, então, o problema?
 
J.B. - O problema é muito mais vasto. É que estamos numa situação de uma banalidade mundial. Num certo momento, a França foi emblemática nisso, mas é a situação mundial que se banalizou, exceto por alguns ultra-acontecimentos, que foram bem mais velozes do que nós. Não creio que seja o "intelectual europeu ocidental francês" destinado a interpretá-la. Aliás, será que há uma interpretação possível no sentido clássico, uma análise, uma reflexão, uma consciência moral de tudo isso? Não creio. Essa é a radicalidade da própria situação. Em relação a como nos viramos com isso, o que se pode ver é que, cada vez mais, o que chamamos de intelectual ou intelligentsia, enfim, o pensamento no sentido reflexivo, paradoxal, e mesmo a ironia, tudo isso encolheu e está seriamente ameaçado. Nesse domínio, há uma implosão em favor do desenvolvimento de novas tecnologias, e nasce, suavemente, uma nova tecnologia mental que toma o lugar das idéias, do que chamávamos de idéias. Acho que vemos, talvez, uma espécie em via de extinção. Isso faz parte de toda espécie destinada a desaparecer. Uma época intelectual pode ter o mesmo destino que uma espécie.
 
CULT - O senhor traça uma linha que vai do crash financeiro de Wall Street de 1929 ao desmoronamento das Torres Gêmeas, em setembro de 2001. O senhor vê entre esses dois acontecimentos um atalho de uma globalização em marcha, numa queda fatal. O que é essa queda?
 
J.B. - É uma queda. E uma queda é quase sempre fatal. A crise de 1929 foi uma espécie de implosão de um sistema. O 11 de setembro é mais profundo e mais vasto, mas também é um crash. A crise de 1929 propulsou o sistema numa órbita muito mais eficaz. Mesmo no caso das guerras. Houve um tipo de centrifugação das coisas. E esse sistema superdimensionado levou um sério golpe com o 11 de setembro, com conseqüências inacreditáveis, e que pressagia tudo o que se segue. É um processo. Não é o fim, mas o começo de algo. E que como todos os começos, é uma queda fatal. Não sou fatalista, mas ainda prefiro o fatal ao banal. E essa evolução fatal é rica e complexa, não é pessimista, mas uma situação original, radicalizada, diante da qual somos impotentes. Há uma forma de energia diferencial mesmo no crash. Ainda estamos muito próximos do 11 de setembro para saber no que isso vai dar. Não é a continuação do terrorismo pontual - Madri, Londres -, mas no fundo é o lado espetacular, quase uma espécie de banalização.
 
CULT - O senhor aponta a hegemonia de hoje como uma forma de dominação total, alerta para a ilusão democrática e denuncia aqueles que ainda proclamam a imaginação no poder, como os nostálgicos de Maio de 68. Para aonde estamos indo?
 
J.B. - O que vemos emergir é uma espécie de energia irredutível. Mais o sistema se globaliza, mais cria discriminações. Essa globalização é também uma fratura total, cada vez mais haverá dois universos paralelos que não terão mais nada em comum. Há nisso uma tensão potencial muito forte. E há uma resistência por todo lado e em todos os níveis contra essa homogeneização total. Se chegarmos ao fim dessa globalização, será a fase terminal, a solução final, a abolição de toda singularidade. Em cada sociedade e em cada indivíduo há algo que resiste a isso, que diz "não". O "não" do referendo francês contra a Constituição Européia, analisei simbolicamente, além do aspecto político, que não me interessa, mas como uma denegação, uma recusa, como se as pessoas tentassem dizer "parem de se preocupar conosco, parem de trabalhar para o nosso bem". Recusa-se essa hegemonia, que é o Império do Bem, pois tudo isso é em nome do Bem, da felicidade, da democracia, do progresso, da técnica, pois começa-se a tratar com uma maquinação infernal. E isso as pessoas sentem.
 
Não é preciso ser politicamente à esquerda ou à direita para sentir isso. Lia há pouco tempo A canção do Carrasco, de Norman Mailer. O condenado à morte quer ser executado. E, em nome da democracia e dos direitos humanos, não se quer mais executá-lo. Ele diz: "Não, vocês escolheram me matar, então me matem, assumam suas responsabilidades". É uma crítica fantástica da sociedade em suas contradições totais. Eles o condenaram à morte e querem forçá-lo a viver, e ele quer ser executado. Não se pode dar razões particulares a essa denegação, a essa recusa, senão que nos sentimos completamente despossuídos, completamente reféns, e isso ninguém quer. As coisas andam e a máquina funciona, mas acumula-se também, potencialmente, uma espécie de estoque de energia reversível, inversa.
 
CULT - Qual será o destino dessa energia acumulada?
 
J.B. - Aonde isso vai dar? Não sei. Mas é certo que há uma carga cada vez maior, e o sistema registra essa resistência e a remete na comunicação e também na guerra. Os Estados Unidos fazem o trabalho, mas não são os únicos, não se pode torná-los particularmente responsáveis. Mas todo o trabalho se faz no sentido de compensar essa espécie de defecção, de pessoas que não querem mais jogar o jogo. E o "não" à Europa foi isso. "Essa Europa, essa espécie de jogo com trucagens, que vem de cima, que trama, não compreendemos nada, não queremos, não sabemos bem por que, mas preferimos o não". O problema é que, efetivamente, não há nada hoje, nem grupo, indivíduo, que possa dispor de um outro jogo e de uma outra regra do jogo. Criticamos todas essas formas lingüísticas, étnicas, religiosas, etc, que chamamos de revisionismo, fundamentalismo, tudo isso é bastante negativo. E é verdade, de uma certa forma pode parecer como uma regressão, mas é um sintoma desesperado de pessoas que procuram uma regra do jogo, porque já não há mais.
 
CULT - Há uma tendência na Europa de pensar a si mesma como modelo alternativo aos Estados Unidos. Seria isso mesmo verdade? Não se trataria, em última analise, de um mesmo modelo?
 
J.B. - Eu não acredito nem um instante nessa idéia da Europa como um modelo de civilização alternativa, do universal contra o mundial, mas é o discurso que se mantém. Acho que em termos de inteligência política, nosso novo papa, Ratzinger, foi bem mais forte quando dizia que mais a Igreja se confunde com o mundo, mais ela se torna supérflua. É um pouco a mesma coisa. Há um modelo, e mais o modelo quer se confundir com a realidade que não existe mais, mais ele se torna supérfluo. O papa diz: "Eu quero salvar a Igreja, não quero tentar seguir o curso dos costumes; se a Igreja quiser existir, deve manter sua distância e se fazer como modelo". Isso é perfeito, acho que ele é de uma grande inteligência política. Eu pouco me importo em salvar a Igreja, mas de seu ponto de vista está correto. E os europeus de Bruxelas não foram inteligentes o bastante para ver isso. E isso vale também para a arte. O que podemos criticar é ela ter desejado se confundir com a realidade, assumir a realidade e reproduzi-la na sua banalidade, e mais isso ocorre, mais se torna supérflua. É a mesma coisa para a mulher. Mais ela busca se confundir com o homem, o feminino com o masculino, assumir o mesmo poder, mais se torna supérflua. Ao dizer isso, claro que não me fiz muitas amizades. Em relação à Europa, no começo eles tinham a arrogância feliz do "sim" triunfante, e agora têm uma arrogância infeliz. Mas nada mudou, eles ainda se pensam como a consciência moral e detentores dos valores universais. Há uma espécie de cegueira nessa boa consciência triunfalista e imperialista.
 
CULT - Como o senhor vê um país como o Brasil e sua cultura no processo de hegemonia e de "canibalização" do qual fala?
 
J.B. - O Brasil permanece como uma forma utópica, talvez, mas simbólica, com uma energia simbólica. Mais do que a Amazônia como reserva ecológica, vejo o Brasil como reserva simbólica. Ainda acredito nisso. A política no Brasil vive um momento difícil, mas não é isso que conta mais. Vejo nessa forma de Carnaval-canibal uma espécie de potencial canibalesco, que é uma força adversa, uma estratégia de absorção antagonista em relação à essa potência mundial. Acredito ainda nessa carnavalização do mundo, como um simulacro universal, mas a canibalização como uma reação, uma reversão, uma retomada potencialmente violenta, mas não necessariamente. O Brasil, não tanto Lula, permanece como um ponto de esperança. 
 
 
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