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Em defesa do absurdo
FABIO SILVESTRE CARDOSO
 
Albert Camus por Ramon Muniz

Em março de 2012, o diário francês Le Monde publicou um texto inédito de um dos principais autores de língua francesa do século 20: Albert Camus. O artigo estava inédito porque, à época em que em foi escrito, o jornal Le Soir Republican, editado na Argélia, o censurou. Mais de setenta anos depois, é notável o quanto do autor permanece relevante não somente pelo que tem a dizer, mas também pela forma com a qual decide expressar suas idéias. Num momento em que boa parte dos formadores de opinião acredita ter algo relevante a contribuir para o debate público em todas as áreas (ainda que não sejam capacitados para tanto), ou mesmo quando intelectuais hesitam em falar o que realmente pensam (exatamente porque lhes falta o compromisso para com a verdade), preferindo pensar por procuração, Albert Camus não tergiversou. Sua obra tem o mérito de apresentar a complexidade do mundo à sua volta de forma clara.

Embora seja um dos mais destacados autores de língua francesa, Albert Camus nasceu na Argélia, a 7 de novembro de 1913. Foi jornalista e filósofo, mas sua trajetória intelectual ficaria para sempre marcada pela sua obra de estréia na ficção, O estrangeiro, romance publicado em 1942. Em 1957, foi laureado com o prêmio Nobel de Literatura, e morreu em janeiro de 1960, vítima de um acidente de automóvel. A relação do autor com sua terra natal está bastante destacada em seus livros, principalmente nos romances, em que conseguiu, de maneira bastante elaborada e sucinta, atacar o cerne das questões, sem escorregar para os maniqueísmos ou apelar para as soluções fáceis. Em Camus, a existência está marcada pela angústia e pela sensação de ausência de sentido da trajetória do ser humano.

Um exemplo bastante apreciado disso está no já citado O estrangeiro, livro que conta com uma das principais seqüências de abertura da história da literatura do século 20. Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Em poucas palavras, o narrador em primeira pessoa revela um acontecimento terrível — ao menos para quem, na cultura ocidental, preserva determinados valores e cultiva o afeto dos pais como entes queridos —, e esse fato desencadeará uma série de outros eventos que, de maneira incompreensível e igualmente trágica, fará com que Mersault (esse é o nome do personagem) seja tragado para uma discussão moral, existencial e filosófica do homem do seu tempo. A obsessão com a primeira frase não se deve somente a isso; representa, também, a maneira como esse personagem, alienado de si mesmo, como que num estado de choque permanente, não consegue processar o que está ao seu redor. E é diante dessa condição que, a certa altura do livro, logo depois de participar do enterro de sua mãe e de aparentemente não se importar com isso, Mersault confronta um árabe e comete um assassinato. Adiante, num julgamento tão peculiar como o seu crime, ele é condenado à morte.

A grande questão apresentada no romance, no entanto, não reside apenas na forma desprovida de afeto com que o protagonista encara os fatos — o tempo todo ele parece estar absorto, distante, sem levar em conta o que os outros dizem ou acusam. O elemento-chave para capturar a lógica de O estrangeiro é precisamente o absurdo que paira sobre todos os acontecimentos. Dito de outra maneira, se existe uma linha de raciocínio que explica tudo neste e em outros livros de Camus, é a idéia do absurdo. O autor não se mete a resolver a questão para o leitor, nem mesmo se coloca como arauto da razão, se destacando dos demais que, ignaros, sofreriam com isso. Albert Camus apresenta o absurdo no modo como seus personagens lidam com o cotidiano e, assim, põe o leitor a indagar o quanto a ausência de sentido rege as coisas que acontecem no dia-a-dia.

Em O estrangeiro, por exemplo, a regência do absurdo fica evidente em pelo menos dois trechos. Num primeiro momento, quando se dá o assassinato: Mersault se vê mais oprimido pelo suor escaldante do que pela eventual ameaça do algoz árabe à sua frente. E graças a esse mesmo sol e a essa mesma luz é que ele cede ao instinto e puxa o gatilho. O segundo trecho aparece no julgamento, quando um dos motivos que aceleram sua condenação é seu sentimento de destacamento da realidade que o cerca, o que alguns poderiam classificar como alienação, mas, em Camus, atende pela ausência de sentido na vida. É como se ele não mostrasse arrependimento pelo crime que cometeu. Como o personagem Bartleby, de Herman Melville, que não se importava em não corresponder às regras de conduta que lhe eram exigidas, o Mersault de Camus não parece se importar com as convenções morais do mundo ao seu redor. E isso foi capital para selar seu destino.

Se em O estrangeiro o absurdo aparece na maneira banalizada com a qual o protagonista lida com o mundo, em A peste essa dinâmica está presente na maneira como a cidade de Oran é varrida pela doença, que de início vitima os ratos, mas depois alcança as pessoas. O resultado é que a cidade é fechada e o cotidiano do lugar muda drasticamente, a ponto de seus moradores se sentirem solidários uns com os outros na condição de exílio. Assim, personagens que antes gostariam de escapar daquela situação, com o tempo decidem dedicar seus esforços no sentido de auxiliar na recuperação da epidemia. Nada disso, no entanto, impede que o lugar caminhe para uma espécie de Estado de Exceção. Antes de melhorar, ficou tudo muito pior do que já estava.

Tal saída se dá a partir do atestado de falência das resoluções tomadas até ali, e nesse ponto talvez seja impossível não articular a interpretação da obra à luz dos acontecimentos políticos que envolvem a Segunda Guerra Mundial. Camus, com efeito, não escreveu apontando para este ou para aquele personagem, mas a descrição das condições de vida em Oran — com o fechamento da cidade, a sensação de desespero com a perda de contato com as pessoas mais próximas e, ainda, a tenacidade de algumas decisões políticas tendo como objetivo uma estratégia de redução de danos — faz com que essa seja uma analogia bastante possível, muito embora outras leituras também o sejam — e aqui é fundamental ressaltar que Camus também se refere a outro autor que escreveu sobre a peste, Daniel Defoe, aos moldes de um relato jornalístico de seu tempo, com o livro Um diário do ano da peste.

Ao escrever sobre o franco-argelino, o crítico Otto Maria Carpeaux assinalou que esse paralelo com a Segunda Guerra Mundial era possível porque, à sua maneira, o autor era um idealista. De acordo com Carpeaux, esse cenário de epidemia alcança o estatuto de símbolo em virtude das múltiplas possibilidades da idéia de “praga” no sentido figurativo. Desta forma, prossegue o crítico, a peste sobre a qual escreveu Camus estava longe de ser uma epidemia clássica, dessas que são encontradas nos livros de medicina. Muitos anos depois, quando da repercussão do livro Ensaio sobre a cegueira, alguns críticos estabeleceram uma conexão entre o romance de Saramago e a obra de Camus, haja vista que a estrutura temática nesses dois livros é similar.

Abordagem filosófica

Se o leitor interessado buscar alguma informação sobre Camus em compêndios de literatura, ou mesmo na internet, é certo que quase a totalidade desses escritos e resumos vai apontar que o escritor pertencia à classe de autores existencialistas, talvez sendo o expoente deles no século 20, numa tradição que remonta a pensadores como o dinamarquês Kierkegaard e a Jean-Paul Sartre — este último uma espécie de duplo de Camus, a tal ponto que houve uma disputa intelectual entre os dois, história desenvolvida por Ronald Aronson no livro Camus e Sartre: O fim de uma amizade no pós-guerra (Nova Fronteira, 2008).

A abordagem filosófica de Camus não estava restrita, no entanto, às querelas ideológicas. Já no que se refere ao existencialismo, no romance A queda (1956), seu último livro de ficção publicado em vida, o leitor tem em mãos um relato em primeira pessoa no qual o narrador, um advogado chamado Jean-Baptiste Clamence, faz uma espécie de acerto de contas acerca de sua existência. Aqui, tão importante quanto a estrutura narrativa, forjada como se fosse um monólogo, é o tom reflexivo do relato. Ao mesmo tempo em que fala de sua bem-sucedida vida de advogado, o narrador comenta sua crise existencial, especulando mesmo acerca da legitimidade de seus gestos de bondade. E esse tipo de raciocínio o faz crer que sua motivação não se ampara em algo além do egoísmo.

Em A queda, em que pese essa auto-depreciação, as palavras e as idéias do narrador não são creditadas em virtude de seu status social, de modo que a opção final de Clamence é uma espécie de desistência de seu modo de vida, considerado por ele hipócrita e falso. Como resultado, sua atividade profissional e seus amigos são deixados de lado. Agora quase em caráter confessional, o narrador se desprende de uma vida que lhe parece sem sentido, onde não há espaço para inocentes, mesmo que sob a égide do absurdo.

E o absurdo volta à cena, assim como a narrativa ficcional, em O primeiro homem, publicado postumamente. O relato aqui assume o tom memorialístico graças às lembranças que marcam a trajetória do narrador — desde a morte do pai e a relação com sua mãe, passando, ainda, pelo período de colonialismo em território africano. Como não se trata de um livro terminado (foi publicado a partir das anotações diversas encontradas nos escombros do acidente de automóvel que matou Camus), sua apreciação pela crítica é controversa na medida em que a obra não possui a mesma reputação de livros anteriores; de qualquer modo, existe um consenso em torno das questões envolvidas nessa história, como a presença das origens do autor e a reelaboração de alguns temas, a exemplo da reflexão sobre a morte e a influência do contexto cultural na formação do personagem. Se, por um lado, essa repetição temática marca certa obsessão do autor para com alguns assuntos, por outro, é o atestado da versatilidade de Albert Camus para desenvolver uma ficção que gira em torno de um tópico-chave no âmbito da filosofia.

Carpeaux, escrevendo para a História da literatura ocidental, afirma que Camus pode ser enquadrado como um escritor-ensaísta. Assim, na obra camusiana, para além da elaboração romanesca, existe a proposta de argumentação filosófica como um tipo de fundamentação conceitual. É evidente que a ficção não perde força por isso, e talvez esse seja um dos grandes méritos de Camus como escritor, mas o leitor que não levar esse dado em consideração eventualmente perde de perspectiva o elemento central que rege a obra do escritor: o funcionamento do mundo a partir da lógica do absurdo.

Se na prosa de ficção esse absurdo surge na inquietação de seus personagens, que ora contestam o status quo, ora questionam sua própria condição no mundo, na prosa de não-ficção o tratamento do conceito de absurdo aparece de forma muito mais declarada, como se fosse essencial para o conhecimento do que se passa ao redor. Com efeito, é nos ensaios que a reflexão assume até mesmo um viés moralista, como se o interlocutor devesse ser acordado dessa posição confortável para ser confrontado com a falta de sentido do mundo.

Em O mito de Sísifo, um de seus ensaios mais célebres (ainda que não necessariamente tenha sido lido por todos que o citam), Camus inicia com uma reflexão a um só tempo inquietante e polêmica. De acordo com o autor, a verdadeira questão filosófica que realmente merece ser respondida é o suicídio. “Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia”, prossegue. Se por essa abertura o ensaio já consegue capturar a atenção do leitor, à medida que a discussão se aprofunda, Camus alcança o feito de elaborar de forma instigante uma interpretação bastante refinada a propósito da presença do absurdo como tônica da existência cotidiana.

Conforme sua percepção, o suicídio encontra explicação precisa no entendimento de que é o absurdo, e não a razão, que domina a vida. E sua análise é desesperadamente aterradora quando ao leitor é revelado inclusive a recusa eloqüente do edifício da razão como um postulado absoluto para compreender os mistérios da existência: “A inteligência também me diz, à sua maneira particular, que este mundo é absurdo. Seu contrário, que é a razão cega, prefere pretender que tudo está claro; eu esperava provas e desejava que ela tivesse razão. Mas, apesar de tantos séculos pretensiosos e acima de tantos homens eloqüentes e persuasivos, sei que isto é falso”, escreve o autor em O mito de Sísifo.

Em outra passagem do livro, ele elabora uma constatação sofisticada não somente do ponto de vista da linguagem, mas também plena no que tange ao significado. Diz Camus que a descoberta da ausência de sentido das ações corriqueiras (“os atos de uma vida maquinal”) se confunde com o começo de um movimento da consciência. Eis o princípio da filosofia, muitas vezes escondida por trás de manuais esquemáticos que, em vez de demonstrar esse movimento, preferem despejar o saber das citações e dos autores que, fora de contexto, mais escondem do que revelam o conhecimento.

Em outros ensaios, essa movimentação segue o intento de demonstrar o quanto o absurdo foge ao nosso controle, mesmo quando temos, aparentemente, toda a estrutura para enfrentar essa força violenta da natureza. Em O avesso e o direito, o leitor descobre que o Camus de vinte e poucos anos já tratava dos seus temas de sempre com alta fidelidade. Assim, em sua reflexão sobre a morte e a solidão, por exemplo, o autor já esboçava as propostas que seriam abordadas em sua ficção. É interessante constatar, nesse sentido, o quanto de sua maturidade intelectual já estava forjada nesse momento, e o caminho da ficção, com seus romances, seria uma estrada natural para a depuração dessas idéias concebidas dentro do gênero ensaio.

Talvez a definição mais precisa de Albert Camus como ensaísta seja a do crítico francês René Etiemble, que o diagnosticou como um moralista de atitudes niilistas, ainda que mantivesse disposição para uma espécie de “reconversão”. Esse desencanto permanente fica mais claro não somente em obras como A queda, mas também no ensaio filosófico O homem revoltado. Neste livro, o autor propõe uma revisão dos processos revolucionários, mostrando a lógica perversa que guia o estratagema desse tipo de rebelião.

Na dissertação de mestrado Esculpir em Argila: Albert Camus — Uma estética da existência, o pesquisador Gabriel Ferreira da Silva também aborda, a certa altura, o conceito de revolta em Camus, tomando as obras O mito de Sísifo e O homem revoltado como peças complementares para uma discussão mais ampla. Com isso, seguindo a leitura de Ferreira da Silva, “a revolta é uma postura de oposição consciente ao Absurdo”. No limite, observa o pesquisador a propósito das obras de Camus, a revolta é uma espécie de válvula (um caminho natural?) de escape frente ao absurdo.
 
Camus apresenta o absurdo no modo como seus personagens lidam com o cotidiano e, assim,
põe o leitor a indagar o quanto a ausência de sentido rege as coisas que acontecem no dia-a-dia.


De volta às origens

Se a trajetória intelectual da obra de Albert Camus percorreu a trilha da ficção e da filosofia em torno das questões concernentes à condição humana e ao absurdo, não há dúvida de que seu país de origem também é relevante para compreender algumas das inquietações do autor. Em um texto publicado na Smithsonian Magazine, o repórter Joshua Hammer reconstrói a narrativa de Camus na Argélia e apresenta uma informação no mínimo curiosa sobre o autor e seu lugar de nascimento. Camus ainda é um estrangeiro em seu próprio país. Isso porque, mesmo tendo sido reconhecido como um grande homem de letras no plano internacional, para consumo doméstico suas idéias são consideradas controversas no tocante à condição política da Argélia. Embora tenha utilizado o país como cenário para suas obras, Camus acreditava, até o fim de sua vida, que a Argélia deveria permanecer como parte da França, uma posição corajosa e ao mesmo tempo contracorrente para a visão de mundo contemporânea. O escritor, informa Hammer, é percebido em sua terra natal como um colonialista, a ponto de, no centenário do seu nascimento, não existir alarde para comemoração oficial.

De qualquer modo, em que pese todo esse ressentimento, as recentes obras de Albert Camus que têm sido publicadas reapresentam o autor à região de seu nascimento, mostrando que, a despeito do discurso oficial, ele ainda pertence àquele espaço. Dessa maneira, a seleção de textos que ora é publicada pela primeira vez em língua inglesa Algerian chronicles traz artigos escritos entre 1939 e 1958 e revela uma observação bastante peculiar de Camus sobre o Oriente Médio, dando conta, entre outras características, das condições de extrema pobreza da Argélia em meados da década de 1930, o que não necessariamente era percebido pelos escritores daquele período.

Como outros intelectuais e escritores de sua geração, entre eles Arthur Koestler e George Orwell, Camus foi um defensor ardoroso da liberdade de expressão. No discurso de entrega do prêmio Nobel de Literatura, o franco-argelino estabelece como princípios fundamentais do escritor o compromisso com a verdade e o exercício da liberdade. É por esse motivo que, seja nos textos de jornalismo ou de não-ficção, seja na produção literária, a trajetória de Albert Camus como homem de letras se destaca pelas variadas formas escolhidas para expressar a sua mensagem. À sua maneira, guiava-se pelo genuíno desejo de explicar as idiossincrasias do mundo à sua volta a partir da lógica do absurdo. Dessa forma, o absurdo aqui não é um fim, assim como está longe de ser uma afetação ou um modismo; antes, é o princípio de uma posição combativa, crítica e lúcida perante a existência humana.

FABIO SILVESTRE CARDOSO
É jornalista. Vive em São Paulo (SP).
Fonte: Revista Rascunho, nº 165, novembro 2013.