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O ESTÁDIO DO ESPELHO
COMO FORMADOR DA FUNÇÃO DO EU
(01)
TAL COMO NOS É REVELADA NA EXPERIÊNCIA PSICANALÍTICA


 
Jacques Lacan

Comunicação feita ao XVI Congresso Internacional de Psicanálise,
Zurique, 17 de julho de 1949.
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01. Trata-se aqui, em francês, do Je (sujeito do inconsciente), que vem grafado ao longo do texto desta edição como [eu]. Para maiores detalhes, consulta a ‘Nota à edição brasileira’ no final desta volume. (N.E).
*. Extraído de: Lacan, J., Escritos (1966). RJ: Jorge Zahar Editor, 1998, p 96-103.Trad. de Vera Ribeiro
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§ 01/33.  A concepção do estádio do espelho que introduzi em nosso último congresso, há treze anos, não me pareceu indigna, por ter-se tornado mais ou menos de uso comum no grupo francês, de ser novamente trazida à atenção de vocês: hoje, em especial, no que tange aos esclarecimentos que ela fornece sobre a função do [eu] na experiência que dele nos dá a psicanálise. Experiência sobre a qual convém dizer que nos opõe a qualquer filosofia diretamente oriunda do Cogito.
§ 02/33.  Talvez haja entre vocês quem se lembre do aspecto comportamental de que partimos, esclarecido por um fato da psicologia comparada: o filhote do homem, numa idade em que, por curto espaço de tempo, mas ainda assim por algum tempo, é superado em inteligência instrumental pelo chimpanzé, já reconhece não obstante como tal sua imagem no espelho. Reconhecimento que é assinalado pela inspiradora mímica do Aha-Erlebnis, onde se exprime, para Köhler, a apercepção situacional, tempo essencial do ato de inteligência.
§ 03/33.  Esse ato, com efeito, longe de se esgotar, como no caso do macaco, no controle - uma vez adquirido - da inanidade da imagem , logo repercute, na criança, uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a relação dos movimentos assum[96]idos pela imagem com seu meio refletido, e desse complexo virtual com a realidade que ele reduplica, isto é, com seu próprio corpo e com as pessoas, ou seja, os objetos que estejam em suas imediações.
§ 04/33.  Esse acontecimento pode produzir-se, como sabemos, desde Baldwin, a partir da idade de seis meses, e sua repetição muitas vezes deteve nossa meditação ante o espetáculo cativante de um bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por algum suporte humano ou artificial (o que chamamos, na França, um trotte-bébé [um andador]), supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem.
§ 05/33.  Essa atividade conserva para nós, até os dezoito meses de idade, o sentido que lhe conferimos - e que é não menos revelador de um dinamismo libidinal, até então problemático, que de uma estrutura ontológica do mundo humano que se insere em nossas reflexões sobre o conhecimento paranóico.
§ 06/33.  Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem - cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago.
§ 07/33.  A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estágio de infans parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.
§ 08/33.  Essa forma, aliás, mais deveria ser designada por [eu]-ideal(02), se quiséssemos reintroduzi-la num registro conhecido, no sentido [97] em que ela será também a origem das identificações secundárias, cujas funções reconhecemos pela expressão funções de normalização libidinal. Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado - ou melhor, que só se unirá assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de [eu], sua discordância de sua própria realidade.
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02: Deixamos em sua singularidade a tradução que adotamos neste artigo para o Ideal Ich de Freud, sem lhe dar maiores motivos, acrescentando que não a mantivemos desde então.
*. Número da página que aqui termina na ed. Jorge Zahar;
§ 09/33.  Pois a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação de sua potência só lhe é dada como Gestalt, isto é, numa exterioridade em que decerto essa forma é mais constituinte do que constituída, mas em que , acima de tudo, ela lhe aparece num relevo de estrutura que a congela e numa simetria que a inverte, em oposição á turbulência de movimentos com que ele experimenta animá-la. Assim, essa Gestalt, cuja pregnância deve ser considerada como ligada á espécie, embora seu estilo motor seja ainda irreconhecível, simboliza, por esses dois aspectos de seu surgimento, a permanência mental do [eu] à estátua em que o homem se projeta e aos fantasmas que o dominam, ao autômato, enfim, no qual tende a se consumar, numa relação ambígua, o mundo de sua fabricação.
§ 10/33.  Com efeito, para as imagos - cujos rostos velados é nosso privilégio ver perfilarem-se em nossa experiência cotidiana e na penumbra da eficácia simbólica(03) -, a imagem especular parece ser o limiar do mundo visível, a nos fiarmos na disposição especular apresentada na alucinação e no sonho pela imago do corpo próprio, quer se trate de seus traços individuais, quer de suas faltas de firmeza ou suas projeções objetais, ou ao observarmos o papel do aparelho especular nas aparições do duplo em que se manifestam realidades psíquicas de outro modo heterogêneas. [98]
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*03: Lévy-Strauss, "L’éfficacité symbolice", Revue d'Historie des Religions, janeiro-março, 1949 ["A eficácia simbólica", in C. Lévi-Straus, Antropologia estrutural, Rio de janeiro, Tempo Universitário, 1975, cap. X.]
§ 11/33.  Que uma Gestalt seja capaz de efeitos formadores sobre o organismo é atestado por um experimento biológico, ele próprio tão alheio à idéia de causalidade psíquica que não consegue resolver-se a formulá-la como tal. Nem por isso ele deixa de reconhecer que a maturação da gônada na pomba tem como condição necessária a visão de um congênere, não importa qual sexo - e uma condição tão suficiente que seu efeito é obtido pela simples colocação do indivíduo ao alcance do campo de reflexão de um espelho. Do mesmo modo, no gafanhoto migratório, a transição da forma solitária para a forma gregária, numa linhagem, é obtida ao se expor o indivíduo, numa certa etapa, á ação exclusivamente visual de uma imagem similar, desde que ela seja animada por movimentos de ume estilo suficientemente próximo dos que são próprios à sua espécie. São fatos que se inscrevem numa ordem de identificação homeomórfica que seria abarcada pela questão do sentido da beleza como formadora e como erógena.
§ 12/33.  Mas os fatos do mimetismo, concebidos como sendo de identificação heteromórfica, não nos são de menor interesse, na medida em que levantam o problema da significação do espaço para o organismo vivo, não parecendo os conceitos psicológicos mais impróprios para lhes trazer algum esclarecimento do que os ridículos esforços empreendidos com vistas a reduzi-los à pretensa lei suprema da adaptação. Basta lembrarmos os lampejos que sobre eles fez luzir o pensamento (jovem, então, e em recente rompimento com o exílio sociológico em que fora formado de um Roger Caillois quando, através do termo psicastenia lendária, subsumiu o mimetismo morfológico9 a uma obsessão do espaço em seu efeito desrealizante.
§ 13/33.  Nós mesmo mostramos, na dialética social que estrutura como paranóico o conhecimento humano(04), a razão que o torna mais autônomo que o do animal em relação ao campo de forças do desejo, mas que também o determina no "pouco de realidade" nele denunciada pela insatisfação surrealista. E essas reflexões incitam-nos a reconhecer, na captação espacial manifestada pelo estádio do espelho, o efeito, no homem, anterior até mesmo a essa dialética, de uma insuficiência orgânica de sua realidade [99] natural, se é que havemos de atribuir algum sentido ao termo natureza.
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04: Cf., a esses respeito, os textos que se seguem, nas p. 114 e 181-182.
§ 14/33.  A função do estádio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com su[a realidade - ou, como se costuma dizer, do Innenwelt com o Umwelt.
§ 15/33.  Mas essa relação com a natureza é alterada, no homem, por uma certa deiscência do organismo em seu seio, por uma Discórdia primordial que é traída pelos sinais de mal-estar e falta de coordenação motora dos meses neonatais. A noção objetiva do inacabamento anatômico do sistema piramidal, bem como de certos resíduos humorais do organismo materno, confirma a visão que formulamos como o dado de uma verdadeira prematuração específica do nascimento no homem.
§ 16/33.  Observe-se de passagem que esse dado é reconhecido como tal pelos embriologistas através do termo fetalização, para determinar a prevalência dos chamados aparelhos superiores do neuroeixo e, em especial, desse córtex que as intervenções psicocirúrgicas nos levarão a conceber como o espelho intra-orgânico.
§ 17/33.  Esse desenvolvimento é vivido como uma dialética temporal que projeta decisivamente na história a formação do indivíduo: o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engordo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental. Assim, o rompimento do círculo do Innenwelt para o Umwelt gera a quadratura inesgotável dos arrolamentos do eu.
§ 18/33.  Esse corpo despedaçado, cujo termo também fiz ser aceito em nosso sistema de referências teóricas, mostra-se regularmente nos sonhos, quando o movimento da análise toca num certo nível de desintegração agressiva do indivíduo. Ele aparece, então, sob a forma de membros disjuntos e de órgãos representados em exoscopia, que criam asas e se armam para perseguições intestinas como as perenemente fixadas, através da pintura, pelo visionário Hieronymus Bosch, na escalada que elas tiveram, no século XV, para o zênite imaginário do homem moderno. Mas [100] essa forma revela-se tangível no próprio plano orgânico, nas linhas e fragilização que definem a anatomia fantasística, manifesta nos sintomas da esquize ou de espasmo da histeria.
§ 19/33.  Correlativamente, a formação do [eu] simboliza-se oniricamente por um campo fortificado, ou mesmo um estádio, que distribui da arena interna até sua muralha, até seu cinturão de escombros e pântanos, dois campos de luta opostos em que o sujeito se enrosca na busca do altivo e longínquo castelo interior, cuja forma (às vezes justaposta no mesmo cenário) simboliza o isso de maneira surpreendente. E, do mesmo modo, desta vez no plano mental, vemos realizadas essas estruturas de obra fortificada cuja metáfora surge espontaneamente, como que saída dos próprios sintomas do sujeito, para designar os mecanismos de inversão, isolamento, reduplicação, anulação e deslocamento de neurose obsessiva.
§ 20/33.  Mas, a nos fundamentarmos apenas nesses dados subjetivos, e por menos que os emancipássemos da condição de experiência que nos faz deduzi-los de uma técnica de linguagem, nossas tentativas teóricas ficariam expostas á recriminação de se projetarem no impensável de um sujeito absoluto: eis por que procuramos, na hipótese aqui fundamentada num concurso de dados objetivos, a grade diretriz de um método de redução simbólica.
§ 21/33.  Ele instaura nas defesas do eu uma ordem genética que corresponde ao anseio formulado pela Srta. Anna Freud na primeira parte de sua grande obra, e situa (contrariando um preconceito freqüentemente expresso) o recalque histérico e seus retornos num estádio mais arcaico do que a inversão obsessiva e seus processos isoladores, e estes, por sua vez, como precedentes á alienação paranóica, que data da passagem do [eu] especular para o [eu] social.
§ 22/33.  Esse momento em que se conclui o estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante e pelo drama do ciúme primordial (tão bem ressaltado pela escola de Charlotte Bühler nos fenômenos de transitivismo infantil), a dialética que desde então liga o [eu] a situações socialmente elaboradas.
§ 23/33.  É esse momento que decisivamente faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo desejo do outro, constituir seus objetos numa equivalência abstrata pela concorrência de outrem, e que faz do [eu] esse aparelho para o qual qualquer impulso dos instintos será um perigo, ainda que corresponda a [101]uma maturação natural - passando desde então a própria normalização dessa maturação a depender, no homem, de uma intermediação cultural, como se vê, no que tange ao objeto sexual, no complexo de Édipo.
§ 24/33.  O termo narcisismo primário, pelo qual a doutrina designa o investimento libidinal próprio desse momento, revela em seus inventores, à luz de nossa concepção, o mais profundo sentimento das latências da semântica. Mas a doutrina esclarece também a oposição dinâmica que eles procuraram definir entre essa libido e a libido sexual, quando invocaram instintos de destruição, ou atém mesmo de morte, para explicar a evidente relação da libido narcísica com a função alienante do [eu], com a agressividade que ela se destaca em qualquer relação com o outro, nem que seja a da mais samaritana ajuda.
§ 25/33.  É que eles tocaram nessa negatividade existencial cuja realidade é tão vivamente promovida pela filosofia contemporânea do ser e do nada.
§ 26/33.  Mas essa filosofia, infelizmente, só a capta dentro dos limites de uma self-suficiência da consciência, que, por estar inscrita em suas premissas, encadeia nos desconhecimentos constitutivos do eu a ilusão de autonomia em que se fia. Brincadeira espirituosas que, por se nutrir singularmente de empréstimos retirados da experiência analítica, culmina na pretensão de garantir uma psicanálise existencial.
§ 27/33.  Ao cabo do projeto histórico de uma sociedade de não mais reconhecer em si outra função que não a utilitária, e na angústia do indivíduo diante da forma concentracionista do vínculo social cujo surgimento prece recompensar esse esforço, o existencialismo julga-se pelas justificativas que dá para os impasses subjetivos que, a rigor, resultam dele: uma liberdade que nunca se afirma tão autêntica quanto dentro dos muros de uma prisão, uma exigência de engajamento em que se exprime a impotência da consciência pura de superar qualquer situação, uma idealização voyeurista-sádica da relação sexual, uma personalidade que só se realiza no suicídio, e uma consciência do outro que só se satisfaz pelo assassinato hegeliano.
§ 28/33.  A essas proposições opõe-se a nossa experiência, na medida em que ela nos dissuade de conceber o eu como centrado no sistema percepção-consciência, como organizado pelo "princípio de realidade", no qual se formula o preconceito cientificista [102] mais contrário á dialética do conhecimento, e nos indica que partamos da função do desconhecimento que o caracteriza em todas as suas estruturas, tão vigorosamente articuladas pela Srta. Anna Freud; pois, se a Verneinung representa sua forma patente, latente em sua grande maioria permanecerão seus efeitos, enquanto não forem esclarecidos por alguma luz refletida sobre o plano de fatalidade em que se manifesta o isso.
§ 29/33.  Assim se compreende a inércia própria das formações do [eu], onde podemos ver a definição mais abrangente da neurose: ver como a captação do sujeito pela situação dá a fórmula mais geral da loucura, tanto da que jaz entre os muros dos hospícios quanto da que ensurdece a terra com seu barulho e seu furor.
§ 30/33. Os sofrimentos da neurose e da psicose são, para nós, a escola das apixões da alma, assim como o fiel da balança psicanalítica, quando calculamos a inclinação de sua ameaça em comunidades inteiras, dá-nos o índice do amortecimento das paixões da polis.
§ 31/33. Nesse ponto de junção da natureza com a cultura, que a ntropologia de nossa época perscruta obstinadamente, apenas a psicanálise reconhece esse nó de servidão imaginária que o amor sempre tem que redesfazer ou deslindar.
§ 32/33. Para tal tarefa, não há no sentimento altruísta nenhuma promessa para nós, que expomos luz a agressividade subjacente à ação do filantropo, do idealista, do pedagogo ou do reformador.
§ 31/33. No recurso que preservamos do sujeito ao sujeito, a psicanálise pode acompanhar o paciente até o limite extático do "Tu és isto" em que se revela, para ele, a cifra de seu destino mortal, mas não está só em nosso poder de praticantes levá-lo a esse momento em que começa a verdadeira viagem.   
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Nota da BSFREUD:
Esse texto foi escaneado por José Luiz Caon e aqui publicado por sua gentil autorização.

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