PÁGINA DA BIBLIOTECA SIGMUND FREUD

O DESEJO E SUA INTERPRETAÇÃO

Jaques Lacan
Lição XXII

HAMLET VIII
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27 de Maio de 1959



Vamos prosseguir hoje o estudo do lugar, da função do fantasma, na medida em que está simbolizado nas relações do sujeito, provido por parte do sujeito, enquanto marcado com o efeito da palavra em relação a um objeto a que tentamos, da última vez, definir como tal. Essa função do fantasma, vocês o sabem, se situa em algum lugar ao nível dessa relação que tentamos inscrever naquilo que chamamos o grafo. É alguma coisa de muito simples, em suma, já que os termos se resumem aos quatro pontos, se assim posso dizer, situados nos cruzamentos das duas cadeias significantes por um aro que é o da intenção subjetiva. Esses cruzamentos, portanto, determinam esses quatro pontos que chamamos pontos de código, que são aqueles à direita, aqui (A e $ D), e esses dois outros pontos de mensagem (S ( ) e s (A)), isso em função do caráter retroativo do efeito da cadeia significante quanto à significação.

Aqui estão pois os quatro pontos que aprendemos a ornar com significações. São lugares onde vem se situar o encontro da intenção do sujeito com o fato concreto, o fato de que há linguagem. Aqui, os dois outros sinais sobre os quais vamos ter de chegar hoje são $ em presença de D, [ D], e S, significante de  , [ S (  )].

Essas duas cadeias significantes, vocês o sabem, isso está elucidado há muito tempo, representam respectivamente: a cadeia inferior, a do discurso concreto do sujeito na medida em que ela é como tal, digamos, acessível à consciência. O que a análise nos ensinou, na medida em que ela está acessível à consciência, é, talvez, é certamente porque ela parte de ilusões que afirmamos inteiramente transparente à consciência. E se, durante vários anos, tenho insistido diante de vocês por todas as vias pelas quais podiam lhes ser sugeridos as partes ilusórias que há nesse efeito de transparência, se tentei mostrar, por todos os tipos de fábulas das quais vocês talvez ainda têm lembrança, como, no limite, podíamos tentar – sob a forma de uma imagem em um espelho tornada eficaz no além de toda subsistência do sujeito, por qual mecanismo persistente, no nada subjetivo realizado pela destruição de toda vida – se tentei lhes mostrar aí a imagem de uma possibilidade de subsistência de alguma coisa absolutamente especular, independentemente de todo suporte subjetivo, não é pelo simples prazer de um tal jogo, mas isso repousa no fato de que uma montagem estruturada como aquela de uma cadeia significante pode ser suposta durar além de toda subjetividade das sustentações.

A consciência, na medida em que nos dá esse sentimento de ser eu [moi] no discurso, é alguma coisa que, na perspectiva analítica - aquela que nos faz tocar sem cessar, com o dedo, o desconhecimento sistemático do sujeito – é alguma coisa que, justamente, nossa experiência nos ensina a referir a uma relação, nos mostrando que essa consciência – na medida em que ela é de início experimentada, que ela é de início sentida numa imagem que é a imagem do semelhante – é alguma coisa que, acima de tudo, recobre com uma aparência de consciência o que há incluído nas relações do sujeito à cadeia significante primária, ingênua, à demanda inocente, ao discurso concreto enquanto se perpetua de boca em boca, organizando o que há de discurso na própria história; o que salta de articulação em articulação naquilo que se passa de fato numa distância maior ou menor desse discurso concreto comum, universal, que engloba toda a atividade real, social do grupo humano.

A outra cadeia significante é aquela que nos é positivamente dada na experiência analítica como inacessível à consciência. Vocês sentem bem enquanto já para nós, essa referência à consciência da primeira cadeia é suspeita, a fortiori, essa única característica de inacessibilidade à consciência é alguma coisa que, para nós, apresenta questões sobre o que fica do sentido dessa inacessibilidade.

Também devemos considerar, e vou retornar a isso, devemos bem precisar o que entendemos disso. Devemos considerar que essa cadeia, como tal inacessível à consciência, é feita como uma cadeia significante? Mas é a isso que retornarei daqui a pouco, coloquemo-la por enquanto, como ela se apresenta para nós. Aqui (S ( ) D) o pontilhado sobre o qual ela se apresenta significa que o sujeito não a articula enquanto discurso; o que ele articula é outra coisa; o que ele articula ao nível da cadeia significante se situa ao nível do anel intencional. Na medida em que o sujeito se refere enquanto agindo na alienação da significância [signifiance] com o jogo da palavra, o sujeito se articula como o quê? Como enigma, como questão, mui exatamente. O que nos é dado na experiência a partir daquilo que é tangível na evolução do sujeito humano, em um momento de articulação infantil, a saber, que no além da primeira demanda com já com tudo o que ela comporta como conseqüência, há um momento em que ele vai buscar sancionar o que tem diante dele, a sancionar as coisas na ordem inaugurada pela significância. Como tal, ele vai dizer “O que” e ele vai dizer “Porque” É no interior disso que há referência expressa ao discurso, é isso que se apresenta como continuando a primeira intenção da demanda, conduzindo-a à segunda intenção do discurso como discurso, do discurso que se interroga, que interroga as coisas em relação a ele mesmo, em relação à sua situação no discurso, que não é mais exclamação, interpelação, grito da necessidade, mas já nominação. É isso que representa a intenção segunda do sujeito e, se essa intenção segunda, eu a faço partir do lugar A, é na medida em que se o sujeito está inteiramente na alienação da significância, na alienação da articulação falada como tal, e que é aí e nesse nível que se apresenta a questão que chamei da última vez: sujeito como tal, do S? com o ponto de interrogação. Também não é que eu me agrade dos jogos do equívoco, mas é também coerente com o nível no qual procedemos, no ponto em que articulamos – é no interior dessa interrogação, dessa interrogação interna do lugar instituído da palavra, ao discurso, é no interior disso que o sujeito deve tentar se situar como sujeito da palavra, demandando aí ainda: Será? O quê? O porquê? Quem é que fala? Onde é que isso fala? É precisamente no fato que o que se articula ao nível da cadeia significante não é articulável no nível desse [será?], dessa questão que constitui o sujeito uma vez instituído na palavra, é nisso que consiste o fato do inconsciente.


Aqui quero simplesmente lembrar o uso daqueles que poderiam aqui se inquietar, como de uma construção arbitrária, dessa identificação da cadeia inconsciente que apresento aqui, em relação à interrogação do sujeito, nas mesmas relações que aquelas do discurso primeiro da demanda à intenção que surge da necessidade, quero lhes lembrar aqui, é que se o significante, se o inconsciente tem um sentido, esse sentido tem todas as características da função da cadeia significante como tal. E aqui eu sei muito bem que fazendo esse breve lembrete, devo fazê-lo, para a maioria dos meus auditores, alusão àquilo que sei que eles já ouviram de mim quando falei dessa cadeia significante, na medida em que ela é ilustrada na história que publiquei alhures, a fábula dos discos brancos e dos discos pretos, na medida em que ela ilustra alguma coisa de estrutural nas relações de sujeito a sujeito, na medida em que encontramos aí três termos.

Nessa história um sinal [signe] distintivo permite identificar, discriminar em relação a um casal branco ou preto, a relação com os outros sujeitos. Para aqueles que não se lembram, eu me contentarei em lhes dizer que se refere ao que escrevi sobre isso , em relação a essa sucessão de oscilações por onde o sujeito se localiza, em relação a quê? Em relação à busca do outro que se faz em função daquilo que os outros vêem dele mesmo e daquilo que os determina de modo conclusivo, a saber, o que chamarei aqui o [raciocínio], aquilo pelo que o sujeito decide que ele é de fato branco ou preto, se confirma, pronto para declarar aquilo para que a fábula é construída.

Será que vocês não encontram aí exatamente aquilo que, na estrutura da pulsão, nos é de uso familiar, a saber, esse fato de identificação relativa, essa possibilidade da denegação, da recusa da articulação, da defesa, que são tão coerentes à pulsão quanto o avesso no lugar do direito de uma mesma coisa, e que se conclui com alguma coisa que se torna para o sujeito a marca, a escolha em tais condições, em tais situações, aquilo em que ele escolhe sempre, de fato, esse poder de repetição, sempre o mesmo, que tentamos chamar, segundo os sujeitos, uma tendência masoquista, uma inclinação ao fracasso, retorno de recalcado, evocação fundamental da cadeia primitiva? Tudo isso é uma só e mesma coisa, a repetição no sujeito de um tipo de sanção cujas formas ultrapassam em muito as características do conteúdo.

Essencialmente o inconsciente se nos apresenta sempre como uma articulação indefinidamente repetida e é por isso que é legítimo que nós o situemos nesse esquema sob a forma desta linha pontilhada. Nós a pontilhamos aqui porque? Nós o dissemos, na medida em que o sujeito não tem acesso a isso, e dizemos, mais precisamente, na medida em que a forma pela qual o sujeito pode aí nomear-se, pode situar-se enquanto o suporte dessa sanção, na medida em que pode aí se designar, enquanto aquele sobre quem portará finalmente a marca, os estigmas do que permanece para ele não somente ambíguo, mas, propriamente falando, inacessível até um certo termo que é aquele, justamente, que dá a experiência analítica. Nenhum Eu [Je] dele pode ser articulado nesse nível, mas a experiência se apresenta como “isso vem de fora”, e já é muito que isso aconteça, ele pode lê-lo como um “Isso fala”[Ça parle]. Há aí uma distância que não é nem mesmo dita, apesar do alcance que a prescrição de Freud nos dá disso, que, de um modo qualquer, o sujeito possa atingir o objetivo.

O alcance portanto, nesse nível do ponto dito de código, na medida em que o simbolizamos aqui pela confrontação do $ com a demanda, D, significa o quê? Muito precisamente isto: é que isso é nada mais do que esse ponto que chamamos ponto de código, e que só é implicado na medida em que a análise começa a decifração da coerência da cadeia superior, é na medida em que o sujeito, $, enquanto sujeito do inconsciente, isto é, enquanto o sujeito que é constituído no além do discurso concreto – na medida em que o sujeito vê, lê, entende, digo retroativamente, podemos supô-lo aqui como suporte da articulação do inconsciente – encontra o quê? Encontra aquilo que nessa cadeia da palavra do sujeito, enquanto o que questiona sobre ele mesmo, encontra a demanda.

Que papel desempenha a demanda nesse nível? Nesse nível, e é o que quero dizer com o sinal  entre $ e D, nesse nível a demanda é afetada por sua forma propriamente simbólica, a demanda é utilizada enquanto além daquilo que ela exige quanto à satisfação da necessidade, ela se apresenta como essa demanda por amor ou essa demanda de presença por onde dissemos que a demanda institui o outro a quem ela se endereça como aquele que pode estar presente ou ausente. É na medida em que a demanda desempenha essa função metafórica, enquanto a demanda, seja oral ou anal, se torna símbolo da relação com o Outro, que ela desempenha aí sua função de código, ela permite constituir o sujeito como estando situado no que chamamos, na nossa linguagem, a fase oral ou anal, por exemplo.

Mas isso pode ser chamado também a correspondência da mensagem, isto é, daquilo que, com esse código, o sujeito pode responder ou receber como mensagem àquilo que é a questão que, no além, dá a primeira tomada na cadeia significante. Ela se apresenta ali também em pontilhado, e, como vindo do Outro, a questão do “Che vuoi?”, “Que queres?” É o que o sujeito, além do Outro, se apresenta sob a forma do “Será?” [Est-ce? ] A resposta é aquela que é simbolizada aqui sobre o esquema, pela significância do Outro enquanto S (A ). Essa significância do Outro, enquanto É?, lhe damos, nesse nível, um sentido que é esse sentido mais geral, esse sentido no qual vai se despejar a aventura do sujeito concreto, sua história subjetiva. A forma mais geral é esta: é que não há nada no Outro, não há nada na significância que possa bastar para esse nível da articulação significante. Não há nada na significância que seja a garantia da verdade. Não há nenhuma outra garantia da verdade do que a boa fé do Outro, isto é, alguma coisa que se apresenta sempre para o sujeito sob uma forma problemática. Será isto dizer que o sujeito permanece, ao final de sua questão, nessa inteira fé concernente ao que para ele faz surgir o reino da palavra?

É justamente aqui que nós chegamos ao nosso fantasma. Já da última vez, lhes mostrei que o fantasma, enquanto o ponto de apoio concreto por onde abordamos nas margens do inconsciente como o fantasma desempenha para o sujeito esse papel do suporte imaginário, precisamente desse ponto em que o sujeito não encontra nada que possa articulá-lo enquanto sujeito de seu discurso inconsciente.

É a isso, portanto, que retornamos hoje, que nos cumpre interrogar de mais perto aquilo que acontece com esse fenômeno. Eu lhes lembro que da última vez lhes disse a propósito do objeto – como se o objeto desempenhasse aí o mesmo papel de miragem que no nível inferior a imagem do outro especular i(a), desempenha em relação ao eu [moi]. Assim, portanto, face ao ponto onde o sujeito vai se situar para aceder ao nível da cadeia inconsciente, aqui, coloco o fantasma como tal. Essa relação ao objeto tal como ele é no fantasma, nos induz a que? A uma fenomenologia do corte, ao objeto enquanto pode suportar no plano imaginário essa relação de corte que é aquela onde, nesse nível, o sujeito tem de se suportar.

Esse objeto, enquanto suporte imaginário dessa relação de corte, o vimos nos três níveis do objeto: pré-genital, da mutilação castrativa, e também da voz alucinatória como tal, isto é, menos, na medida em que ela é voz encarnada, discurso enquanto interrompido, do que cortado pelo monólogo interior, do que cortado no texto do monólogo interior.

Vejamos hoje se não resta muito mais a dizer, se retornamos sobre o sentido daquilo que aí expressa, pois também do que se trataria em relação a alguma coisa que já introduzi da última vez, a saber, do ponto de vista do real, do ponto de vista do conhecimento? Em que nível estamos nós aqui, já que estamos introduzidos ao nível de um $? Será que este Será? [Est-ce que Est-ce?] é outra coisa que um equívoco que é suscetível de ser preenchido por qualquer sentido? Ou vamos nos deter, em sua pertinência verbal de conjugação, ao verbo ser ? Já alguma coisa disso foi trazida da última vez. Trata-se de fato de saber em que nível estamos aqui quanto ao sujeito, na medida em que o sujeito não se refere simplesmente quanto ao discurso, mas também quanto a algumas realidades.

Eu digo isto, se alguma coisa se apresenta, se articula, que possamos, de modo coerente, intitular a realidade, quero dizer a realidade da qual fazemos emprego em nosso discurso analítico, situarei disso o campo sobre o esquema aqui, no campo que está sob o discurso concreto, na medida em que esse discurso o engloba e o fecha, que é reserva de um saber, de um saber que podemos estender tão longe quanto tudo aquilo que pode falar do homem. Eu entendo que ele não é por isso obrigado, a todo instante, a reconhecer aquilo que, já na sua realidade, na sua história, já de início incluiu no seu discurso, que tudo aquilo que se apresenta, por exemplo, na dialética marxista como alienação pode aqui se apreender e se articular de um modo coerente.

Eu direi mais, o corte, não o esqueçamos. E isso já nos é indicado no tipo do primeiro objeto do fantasma, do objeto pré-genital. Ao que é que faço alusão como objetos que aqui possam suportar os fantasmas, se não for a objetos reais em uma relação estreita com a pulsão vital do sujeito, na medida em que eles sejam, dele, separados? O que só é evidente demais é que o real não é um contínuo opaco, que o real é feito bem evidentemente de cortes, tanto quanto e muito além dos cortes da linguagem e que não é de ontem que o Filósofo, Aristóteles, nos falou do bom filósofo, o que quer dizer, no meu sentido, também: “Aquele que sabe em toda sua generalidade é comparável ao bom cozinheiro, é aquele que sabe fazer passar a faca no ponto que é justo, de corte das articulações, sabe penetrar sem feri-las”.

A relação do corte do real e do corte da linguagem é alguma coisa, portanto, que até um certo ponto, parece satisfazer aquilo em que a tradição filosófica em suma, sempre se instalou, a saber, que só se trata de um recobrimento de um sistema de corte por um outro sistema de corte. No que eu digo que a questão freudiana vem em sua hora, está na medida em que aquilo que o percurso realizado pela ciência nos permite formular, é que há na aventura da ciência alguma coisa que vai muito além dessa identificação, desse recobrimento dos cortes naturais por cortes de um discurso qualquer, aquilo que por um esforço que consistiu essencialmente em esvaziar toda a articulação científica de suas implantações mitológicas é, veremos daqui a pouco, alguma coisa que daí nos levou ao ponto onde estamos e que me parece suficientemente caracterizado sem fazer mais drama, pelo termo de desintegração da matéria. É bem alguma coisa que pode nos sugerir só ver nessa aventura puros e simples conhecimentos. Isto é, que, por nos colocar sobre o plano do real, ou, se vocês quiserem, provisoriamente, de alguma coisa que chamarei nesta ocasião (com todo acento de ironia necessária, pois não é certamente a minha tendência chamá-lo desta forma) o grande Tudo; desse ponto de vista, a ciência e sua aventura se apresentam não como o real, se reenviando a si própria seus próprios cortes, mas como elementos criadores de alguma coisa de novo, e que toma o tom de proliferar de um modo que aqui, seguramente, não pudemos nos negar a nós mesmos, enquanto homens, que nossa função mediadora, nossa função de agentes não deixa de apresentar a questão de saber se as conseqüências daquilo que se manifesta não nos ultrapassam um pouco.

Em suma, o homem, nesse jogo, entra às suas custas. Talvez não haja espaço aqui para irmos mais longe, pois esse discurso que faço propositalmente moderado e restrito, do qual pelo menos suponho que o acento dramático e atual não lhes escapa; o que quero dizer aqui é que essa questão quanto à aventura da ciência é outra coisa que tudo o que pode se articular com - mesmo esta conseqüência extrema da ciência -, com todas as conseqüências que foram aquelas do dramatismo humano enquanto inscrito em toda a história. Aqui, no caso, o sujeito particular está em relação com esse tipo de corte constituído pelo fato de que ele não está em relação a um certo discurso consciente, ele não sabe aquilo que ele é. É disto que se trata, trata-se da relação do real do sujeito como entrando no corte, e esse evento do sujeito ao nível do corte em alguma coisa que é preciso chamar um real, mas que não é simbolizado por nada. Parece-lhes, talvez, excessivo ver designar, ao nível do que chamamos há pouco uma manifestação pura desse ser, o ponto eletivo da relação do sujeito àquilo que podemos aqui chamar seu ser puro de sujeito, aquilo pelo que, desde então, o fantasma do desejo toma a função, esse ponto, de designá-lo.

Foi porque, em outro momento, pude definir essa função preenchida pelo fantasma como uma metonímia do ser e identificar como tal, nesse nível, o desejo. Entendemos bem que nesse nível a questão permanece inteiramente aberta de saber se podemos chamar homem o que se indica desse modo, pois o que é que podemos chamar homem senão o que já se simbolizou como tal, e que, também, cada vez que se fala dele, se encontra, pois, carregado de todos os reconhecimentos, digamos históricos? A palavra “humanismo” não designa comumente nada nesse nível. Mas há algo evidente nele, de real, alguma coisa de real que é necessária e que basta para assegurar na experiência mesma essa dimensão que chamamos, creio, bastante impropriamente, hábito, essa profundidade digamos, de além, que faz com que o ser não seja identificável a nenhum dos papéis (para empregar o termo em uso atualmente) que ele assume.

Aqui, portanto, a dignidade, se assim posso dizer, desse ser é definida numa relação que não é, de forma alguma, que ele seja cortado, se posso expressar-me assim, com todos os panos de fundo, as referências castrativas especialmente; se vocês podem, com outras experiências, aí colocar, não o culpado [coupable], para me permitir um jogo de palavras, mas o corte [coupure] como tal, a saber, afinal de contas, o que se apresenta para nós como sendo a última característica estrutural do simbólico como tal; ao que, só quero simplesmente indicar de passagem, que o que encontramos aí é a direção em que já lhes ensinei a pesquisar o que Freud chamou instinto de morte, aquilo pelo que esse instinto de morte pode convergir com o ser.

Nesse ponto pode haver algumas dificuldades. Gostaria de tentar ilustrá-las. No último número de The Psychoanalytic Quaterly há um artigo muito interessante, por sinal sem excessos, do Sr. Kurt Eissler, que se chama A função dos detalhes na interpretação das obras de arte  . É em uma obra de arte, e a obra de arte em geral, de fato, que vou tentar referir-me para ilustrar aquilo de que se trata aqui. Kurt Eissler começa seu discurso, e o termina, por sinal, por uma observação da qual devo dizer que podemos qualificá-la diversamente, segundo a considerarmos como confusa ou simplesmente inexplicada. Eis, de fato, mais ou menos o que ele articula. O termo detalhe parece particularmente significativo a propósito, no caso da obra de um autor, por sinal perfeitamente desconhecido além do círculo austríaco. É um ator-autor, e se me refiro a isso é porque vou voltar daqui a pouco a Hamlet; o ator-autor em questão é um pequeno Shakespeare desconhecido.

A respeito desse Shakespeare que vivia no século anterior, em Viena, Eissler fez uma dessas bonitas histórias, perfeitamente típica daquilo que chamamos a psicanálise aplicada, isto é, que uma vez mais ele encontrou através da vida do personagem um certo número de elementos signaléticos paradoxais que permitem introduzir as questões que permanecerão para sempre não resolvidas, a saber, se o Sr. Ferdinand Raimund foi especialmente afetado, cinco anos antes que tenha escrito uma de suas obras de arte pela morte de alguém que era para ele uma espécie de modelo, mas um modelo tão assumido que todas as questões se fazem a respeito de identificações, paterna, materna, sexual, tudo o que vocês quiserem! A questão, em si mesma, nos deixa bastante frios, é o exemplo desses trabalhos gratuitos que nesse gênero se renovam sempre com um valor de repetição que guarda também seu valor de convicção, mas não é disso que se trata.

Aquilo de que se trata aqui é a espécie de distinção que Eissler quer estabelecer entre a função do que se chama mais ou menos o detalhe relevante  - em inglês chamamo-lo o detalhe que não cola -, o detalhe pertinente. De fato, é a respeito de alguma coisa em uma peça bastante bem feita, do denominado Sr. Ferdinand Raimund, é a propósito de alguma coisa que vem aí, digamos, um pouco como cabelos na sopa, que nada implica absolutamente que o ouvido de Kurt Eissler encontrou-se atento, que de acontecimento em acontecimento ele chegou a reencontrar um certo número de fatos biográficos cujo interesse é absolutamente patente.

Portanto, é do valor de guia do detalhe relevante de que se trata. E aí Eissler faz uma espécie de oposição entre o que se passa na clínica e o que se passa na análise dita psicanálise aplicada que se faz comumente na análise de uma obra de arte. Ele repete duas vezes alguma coisa – se eu tivesse tempo seria necessário que lhes lesse isso no texto para lhes fazer sentir o caráter bastante opaco – ele diz, em suma: é mais ou menos o mesmo papel que desempenham os sintomas, e esse detalhe que não convém, com essa pequena diferença, que na análise partimos de um sintoma que é dado como um elemento relevante, essencialmente para o sujeito; é na sua interpretação que progredimos até sua solução. No outro caso é o detalhe que nos introduz ao problema, isto é, que enquanto em um texto – ele não chega a formular essa noção de texto – em um texto nós captamos alguma coisa que não estava especialmente implicada, como sendo discordante, nós ficamos introduzidos a alguma coisa que pode nos levar até a personalidade do autor .

Há aí alguma coisa que, se olharmos mais de perto, não pode totalmente passar por uma relação de contraste, parece que basta que vocês aí pensem nisso para perceber (se há contraste, há também paralelismo) que, no conjunto, aquilo na direção do que, parece, deveria levá-lo essa observação, é seguramente que a discordância no simbólico – no simbólico como tal, numa obra escrita, e aqui em todo caso – desempenha um papel funcional perfeitamente identificável ao sintoma real, em todo caso do ponto de vista do progresso, se esse progresso deve ser considerado como um progresso de conhecimento concernente ao sujeito.

Nesse título, de todos os modos, a aproximação tem realmente um interesse. Simplesmente, a questão se apresenta nesse momento para nós, em saber se na obra de arte, eu diria, só a falta de marca vai se tornar para nós significativa. E por que, afinal de contas? Pois, se fica claro que na obra de arte o que podemos chamar o erro de impressão – vocês entendem bem que quero dizer alguma coisa que se apresenta para nós como uma descontinuidade – pode nos levar a algum conhecimento útil para nos servir de índice onde reencontramos nos esclarecimentos maiores, e seu alcance inconsciente, tal ou qual incidente da vida passada do autor (o que acontece de fato nesse artigo), será  que, em todo caso, a coisa não nos introduz a isso, é que desde então a dimensão da obra de arte deve ser para nós esclarecida? De fato, nós podemos desde então, e a partir desse único fato (nós o veremos bem além desse fato) apresentar que a obra de arte então não saberia mais, para nós, de modo algum, ser afirmada como representando essa transposição, essa sublimação, chamem isso como vocês quiserem, da realidade; não se trata de alguma coisa que desempenha tão amplamente quanto possível na imitação, não se trata de alguma coisa que desempenha tão amplamente quanto possível na ordem da mimesis.

Isso pode, portanto, se aplicar também nisso que é, por sinal, o caso geral, a saber, que a obra de arte tem sempre uma reestruturação profunda, isso não põe em causa, isso mesmo que, creio, já está para nós ultrapassado. Mas não é sobre esse ponto que entendo atrair sua atenção. É que a obra de arte é para nós limitada a um tipo de obra de arte. Por enquanto me limitarei à obra de arte escrita. A obra de arte, longe de ser alguma coisa que transfigura de algum modo que seja, o quão amplo vocês possam dizê-lo, a realidade, introduz na sua estrutura mesma esse fato do acontecimento do corte, na medida em que aí se manifesta o real do sujeito, enquanto além daquilo que ele diz, é o sujeito inconsciente. Pois se essa relação do sujeito com o acontecimento do corte lhe é interdito na medida em que está justamente aí seu inconsciente, não lhe é interditado enquanto o sujeito tem a experiência do fantasma, a saber, que ele é animado por essa relação dita do desejo, e que - pela única referência dessa experiência e enquanto ela é intimamente tecida na obra – alguma coisa se torna possível pelo que a obra vai expressar essa dimensão, esse real do sujeito na medida em que nós o chamamos há pouco acontecimento do ser além de toda realização subjetiva possível; e que é a virtude e a forma da obra de arte, aquela que tem sucesso e também a que fracassa, que ela implica essa dimensão aí, essa dimensão, se assim posso dizer, se assim posso me servir da topologia do meu esquema para fazê-lo sentir, essa dimensão transversal que não é paralela ao campo criado no real pela simbolização humana que se chama realidade, mas que lhe é transversal na medida em que a relação mais íntima do homem com o corte, enquanto ultrapassa todos os cortes naturais, que há esse corte essencial de sua existência, a saber, que ele está aí e ele deve se situar nesse fato mesmo do acontecimento do corte, que é isso o de que se trata na obra de arte – e especialmente naquela que abordamos mais recentemente, porque ela é, a respeito disso, a obra mais problemática, a saber, Hamlet.

Há também todo tipo de coisas relevantes em Hamlet. Eu direi mesmo que é por aí que progredimos, mas de um modo completamente enigmático. Nós só podemos, a cada instante, nos interrogar sobre isso, o que quer dizer essa relevância? Pois uma coisa fica clara, é que nunca fica excluído que Shakespeare a tenha desejado. Se certo ou errado, pouco importa! Kurt Eissler, na obra de Ferdinand Raimund, pode achar estranho que se faça intervir, num momento, um período de cinco anos do qual ninguém havia nunca falado antes – é o detalhe relevante que vai pô-lo sob a via de uma certa pesquisa – é claro que não procedemos, de modo algum, da mesma maneira concernente ao que se passa em Hamlet, pois, em todo caso, estamos certos que esse tecido de relevâncias não pode, de forma alguma, ser pura e simplesmente resolvido por nós, pelo fato de que Shakespeare se deixava conduzir aqui pelo seu bom gênio. Nós temos o sentimento de que ele era responsável por alguma coisa, e, afinal de contas, ele o seria, nem que seja pela manifestação de seu inconsciente mais profundo; está, em todo caso, aqui, a arquitetura dessas relevâncias, a qual nos mostra aquilo a que ele chega, é essencialmente a se desdobrar na afirmação maior que distinguiremos daqui a pouco, a saber, nesse tipo de relação do sujeito com o seu nível mais profundo, como sujeito falante, isto é, enquanto faz vir à tona sua relação com o corte como tal.

É bem aí o que nos mostra a arquitetura de Hamlet, na medida em que vemos o que, em Hamlet, depende fundamentalmente de uma relação que é a do sujeito à verdade. À diferença do sonho do pai morto, do qual partimos este ano na nossa exploração, o sonho do pai morto que aparece diante do filho traspassado de dor, aqui o pai sabe que ele está morto e o faz saber a seu filho; e o que distingue o cenário, a articulação de Hamlet de Shakespeare da história de Hamlet tal como ela aparece na história literária é justamente que eles são, ambos, únicos a sabê-lo. Na história é público que o assassinato ocorreu, e Hamlet se finge de louco para dissimular suas intenções, todo mundo sabe que houve um crime.

Aqui, só há dois que sabem, dos quais um é ghost. Ora, um ghost, o que é, a não ser a representação desse paradoxo tal como unicamente a obra de arte pode fomentá-lo? É aí que Shakespeare vai no-lo tornar inteiramente crível. Outros além de mim mostraram a função que preenche essa vinda do ghost ao primeiro plano. A função do ghost se impõe desde o início de Hamlet. E esse ghost, o que diz ele? Ele diz coisas muito estranhas e fico espantado que ninguém o tenha nem mesmo abordado, não digo a psicanálise do ghost! mas tenha colocado o acento de alguma interrogação sobre o que diz o ghost. O que ele diz, em todo caso, não é duvidoso. Ele diz: a traição é absoluta, não havia nada maior, de mais perfeito que minha relação de fidelidade a essa mulher. Não há nada mais total do que a traição da qual fui objeto. Tudo o que se apresenta, tudo que se afirma como boa fé, fidelidade e voto, é, portanto, para Hamlet, colocado não somente como revogável, mas como literalmente revogado. A anulação absoluta disso que acontece ao nível da cadeia significante, e é alguma coisa que é bem diferente dessa carência de alguma coisa que garanta; esse termo que é garantido, é a não-verdade; esse tipo de revelação, se assim podemos dizer, da mentira (é alguma coisa que mereceria ser acompanhado), representa o espírito de Hamlet, esse tipo de estupor onde ele entra depois das revelações paternas. É alguma coisa que, no texto de Shakespeare, é traduzido de um modo perfeitamente notável, a saber, que quando lhe perguntamos o que ele aprendeu, ele não quer dizê-lo, e com razão!, mas o expressa de um modo todo particular, poderíamos dizer em francês “que não há um único filho da puta no reino da Dinamarca que não seja um indivíduo imundo ”, isto é, que ele se expressa no regime da tautologia.

Mas, deixemos isto de lado, são só detalhes e anedotas, a questão está em outro lugar. A questão é esta: Onde nos enganamos? É geralmente considerado que um morto não poderia ser um mentiroso. E por que? Pelo mesmo motivo, talvez, pelo qual toda nossa ciência conserva ainda este postulado interno, e Shakespeare o sublinhou em termos próprios (ele dizia de vez em quando coisas que não eram tão superficiais enquanto tais, na ordem filosófica), ele dizia: esse bom velho Deus é esperto, certamente ele é honesto. Será que podemos dizer a mesma coisa de um pai que nos expressa de um modo categórico que ele é presa de todos os tormentos das chamas do inferno, e isso por crimes absolutamente infames? Há aí, no entanto, alguma coisa que não pode deixar de nos alertar, há aí alguma discordância, e se seguíssemos os efeitos, em Hamlet, do que se apresenta como a danação eterna, na verdade para sempre condenada a escapar a ele, se concebemos que Hamlet permanece, então, fechado nessa afirmação do pai, será que nós mesmos, até um certo ponto, não podemos nos interrogar sobre o que significa, pelo menos funcionalmente, essa palavra em relação à gênese e ao desenrolar de todo o drama? Muitas coisas poderiam ser ditas, inclusive essa, que o pai de Hamlet diz isto – em francês: “Mas a virtude não se comove quando o vício viria tentá-la sob a forma do céu. Dessa forma, a luxúria, o vício na cama de um anjo radiante toma logo de desgosto essa camada celeste e corre para a imundície ”. É, por sinal, uma má tradução, pois devemos dizer: “Dessa forma, o vício, mesmo que ligado a um anjo radiante”.

De que anjo radiante se trataria? A não ser um anjo radiante que introduz o vício nessa relação de amor enfraquecido, no qual toda a carga é levada sobre o outro, pode ser aqui, mais do que em qualquer outro lugar, que aquele que vêm para sempre levar o testemunho da injúria sofrida, não tenha culpa nenhuma? Isso, é claro, é a chave que não poderá nunca ser girada, o segredo que não poderá nunca ser esclarecido.

Mas será que alguma coisa não vem aqui nos colocar sobre o traço da palavra sob a qual devemos compreender? Pois bem, está, aqui, como em qualquer outro lugar, o fantasma. Pois o enigma para sempre não resolvido, tão primevo que, supomos, e a justo título, o cérebro dos contemporâneos de Shakespeare, até mesmo, por sinal, que curiosa escolha essa ampola de veneno despejado no ouvido do ghost que é o pai, que é Hamlet-pai, não esqueçam, pois eles se chamam, ambos, Hamlet.

Nisso os analistas não se aventuraram. Houve alguns para indicar que talvez algum elemento simbólico deveria ser reconhecido. Mas é alguma coisa que, em todo caso, pode ser situado, segundo nosso método, sob a forma do bloco que ele forma, do buraco que forma, do enigma impenetrado que constitui. Inútil, eu já o fiz, sublinhar o paradoxo dessa revelação, até, inclusive, suas conseqüências.

O importante é isso, temos aí uma estrutura não somente fantasmática que cola tão bem no que se passa, a saber, que em todo caso há alguém que é envenenado pelo ouvido, é Hamlet; e aqui o que faz função de veneno é a palavra de seu pai. Desde então a intenção de Shakespeare se esclarece um pouco, é, a saber, que aquilo que ele nos mostrou inicialmente é a relação do desejo com essa revelação; durante dois meses Hamlet permanece sob o choque dessa revelação. E como vai reconquistar, pouco a pouco, o uso de seus membros? Pois bem, justamente, por uma obra de arte. Os comediantes lhe vem em tempo, para que ele faça disso o banco de provas da consciência do rei, nos diz o texto.

O que é certo é que é pela via dessa prova que ele vai poder entrar em ação, não em uma ação que vai se desenrolar necessariamente a partir da primeira das conseqüências, é, a saber, primeiramente, que esse personagem que a partir da revelação paterna desejava unicamente sua própria dissolução – “Oh carne sólida demais, como tu não te evaporas, como não possas te dissolver! ” – no final da peça, o vemos tomado por uma embriaguez que tem um nome bem preciso, é aquela do artifex, ele está louco de alegria de ter conseguido seu pior efeito, não se pode mais contê-lo, e Horatio quase precisa se agarrar nas suas roupas para conter uma exuberância exagerada. Quando ele lhe diz: Será que eu não poderia agora “me engajar em alguma troupe como ator, com uma parte inteira?” Horatio responde: com “uma meia parte” . Ele sabe o que esperar... De fato, tudo está longe de ser reconquistado com esse negócio, não é porque seja artifex que ele ainda encontrou seu papel; mas basta que saibamos que ele é artifex para entender que o primeiro papel que ele encontrará, ele o pegará. Ele exercerá aquilo que lhe é, afinal de contas, encomendado, eu lhes lerei de novo essa passagem no seu texto.

Tal veneno, uma vez ingerido pelo rato - e vocês sabem que o rato nunca está muito longe de todos esses casos, especialmente em Hamlet – lhe dá essa sede que é a sede mesmo da qual morrerá, pois ela dissolverá completamente, nele, esse veneno mortal, tal como ele foi inicialmente inspirado a Hamlet.

Alguma coisa se acrescenta àquilo que venho lhes dizer que permite aí ser posto todo seu acento. Um autor nomeado [...] espantou-se disso, que todos os espectadores deveriam ter percebido há muito tempo, é que Claudius se mostra tão insensível ao que precede a cena do jogo, aquela em que Hamlet faz representar diante de Claudius a cena mesma de seu crime; há um tipo de prólogo que consiste em uma pantomima e onde vemos, antes, toda essa longa cena de protestos de fidelidade e de amor da rainha de comédia diante do rei da comédia; antes do gesto de verter o veneno no ouvido, no contexto mesmo do pomar, do jardim, que é feito praticamente diante de Claudius, que, literalmente, não se manifesta.

Vidas inteiras se engajaram nesse ponto. O Sr. [John Dover Wilson] disse alguma coisa, a saber, que o ghost mentia, mesmo que tal não agrade a Deus. Eu não o digo! E o Sr. [John Dover Wilson] escreveu longas obras para explicar como pode ser possível que Claudius, tão manifestamente culpado, não tenha se reconhecido na cena representada. E  ele arquitetou todo tipo de coisas minuciosas e lógicas para dizer que ele não se reconheceu... é que ele estava olhando para outro lado. Não está indicado no jogo de cena, e talvez, afinal de contas, isso não valha o trabalho de uma vida inteira. Será que não poderíamos sugerir que certamente Claudius tem aí alguma responsabilidade, de alguma coisa, ele mesmo o confessa, ele o clama face ao céu, numa história sombria onde naufragam, não somente o equilíbrio conjugal de Hamlet-pai, mas outras coisas mais, até sua vida, e que é bem verdade que “Seu crime cheira mal a ponto de feder até o céu ”. Tudo indica que, num certo momento, ele se sente realmente afetado, no mais profundo de si mesmo, ele salta no momento em que Hamlet lhe diz o quê? Ele lhe diz: “Aquele que vai entrar em cena é Lucianus, ele vai envenenar o rei, é o seu sobrinho”. Começamos a entender que Claudius, desde algum tempo, percebe que há algo, um cheiro de enxofre no ar, quando, por sinal, indagou: “Não há ofensa nisso? Não há a mínima ofensa”, respondeu Hamlet; Claudius, naquele momento, percebe que se ultrapassa um pouco o limite .

Na verdade, permanecemos numa ambigüidade total, a saber, que se o escândalo é geral, se toda a Corte, a partir desse momento, considera que Hamlet está particularmente impossível, pois todo mundo está do lado do rei, é bem certo para a Corte, porque eles [não] reconheceram aí o crime de Claudius – pois ninguém sabe nada e ninguém nunca soube nada até o final, fora Hamlet e seu confidente, do modo como Claudius exterminou Hamlet-pai.

A função do fantasma parece, portanto, ser aqui alguma coisa bem diferente daquela do “meio”, como se diz nos romances policiais, e esse algo se torna muito mais claro se pensarmos, como acredito mostrá-lo para vocês, que Shakespeare foi mais além do que qualquer um, ao ponto em que sua obra é a própria obra, é aquela onde podemos ver descrita uma certa cartografia de todas as relações humanas possíveis, com esse estigma que se chama desejo, enquanto ponto de toque, aquilo que designa irredutivelmente seu ser, aquilo pelo que, miraculosamente, podemos encontrar esse tipo de correspondência.

Não lhes parece absolutamente maravilhoso que alguém cuja obra recortada por todo lado, apresenta essa unidade de correspondência, que alguém que foi certamente um dos seres que avançaram o mais longe nessa direção de oscilações, tenha, ele mesmo, sem nenhuma dúvida, vivido uma aventura, aquela que é descrita no Sonnet, que nos permite recortar exatamente as posições fundamentais do desejo. Retornarei a isso mais tarde. Esse homem surpreendente atravessou a vida da Inglaterra elizabetana incontestavelmente não despercebido, com suas algumas quarenta peças e com alguma coisa da qual temos, no entanto, alguns traços, quero dizer, alguns testemunhos. Mas leiam uma obra muito bem feita e que resume na hora atual, mais ou menos, tudo o que foi feito das pesquisas sobre Shakespeare. Há uma coisa absolutamente surpreendente, é que fora o fato de que ele certamente existiu, não podemos, sobre ele, sobre suas amarras, sobre tudo o que o cercou, sobre seus amores, suas amizades, não podemos verdadeiramente nada dizer. Tudo é passado, tudo desapareceu sem deixar traços. Nosso autor se apresenta, para nós analistas, como o enigma mais radicalmente para sempre evanescido, dissolvido, desaparecido que possamos assinalar na nossa história.



Tradução de Paulo Medeiros e equipe.