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A FALA E A ESCRITA Apresentação da revista Texturas en Psicoanalisis Luiz-Olyntho Telles da Silva Porto Alegre, 6 de maio de 2006 Quando Lacan trata do tema das escrituras, ele começa
pela religião ou, para dizer mais exatamente, pelas escrituras sagradas.
De certo modo ele seu utiliza delas para fazer uma crítica à
Psicologia. No Seminário 2, sobre o moi, sobre o ego, se poderia mesmo
dizer, quando trabalha o sonho da Injeção em Irma, ele enfatiza
a importância do texto dizendo que os comentários às
escrituras perderam-se irremediavelmente no dia em que se quis fazer a psicologia
de Jeremias, quer dizer, no dia em que se quis compreender Jeremias, Isaías
e mesmo Jesus Cristo. Mais que à psicologia de um autor, é
preciso prestar atenção a um texto. Isso precisa ser assim
principalmente com nossos analisantes.
Sim, o que importa é sempre um texto, e um texto,
se ele é verdadeiramente importante, então tem de estar escrito
em algum lugar, em uma plaqueta de argila, um papiro, na internet, nas rochas
de nossa ancestralidade ou em nosso aparelho psíquico. Estar escrito,
contudo, não quer dizer necessariamente legível. Estarão
lembrados do episódio da mulher adúltera trazida pelos fariseus
para julgamento de Cristo. Enquanto escutava a história, quase distraído,
Jesus escrevia na terra com o dedo (João, 8,6). E o quê escrevia?
Até hoje não se sabe, assim como não se sabe nem com
quem ela praticava o adultério nem quem havia dado o flagrante. Contudo
algo contém esse relato para ter ficado particularmente marcado em
nossa cultura.
Os artigos de Texturas apontam para alguns aspectos a serem
considerados: um deles é o da relação da importância
da tradição em relação ao texto, e outro, é
o da musicalidade.
Poucas semanas atrás, Luiz Fernando Veríssimo
nos dizia, em uma de suas crônicas, do tempo que se leva para mudar
uma concepção. Muitos de nós, dizia ele, ainda vivemos
no geocentrismo de Galileu! É verdade! E pior, é bem possível
que nós ainda não tenhamos as necessárias condições
para avaliar a extensão dessa verdade. Há quem diga que a História
conhecida corresponde apenas a 1% de toda a nossa história; e não
é por esse número ser imaginário que não podemos
imaginar uma porção de coisas. Mas o que importa é isto:
viemos de uma tradição oral e nem por termos criado a escrita,
registre-se, a oralidade foi perdida. Guirao e Mosca, apoiados em Borges,
destacam esse importante momento de virada, quando o livro deixou de ser
apenas um instrumento de leitura para ser, com Santo Ambrósio, um
objeto em si mesmo. Essa virada, reparem, aconteceu no século IV d.C.,
quando a escrita já tinha pelo menos onze séculos, quer dizer,
mais de mil anos, para facilitar-lhes a conta. Luiz Fernando tem razão:
somos mesmo muito lentos! Quando James Joyce insiste que o seu Finnegans
Wake seja lido em voz alta, podemos pensar aí em uma proposta de retorno
à tradição oral. Quando aprendi a estudar Psicanálise,
era assim que fazíamos, instruídos por um retor, tal qual Santo
Agostinho com seus alunos. Eu mesmo, com meus colegas, pratico o mesmo método,
buscando, contudo, escapar da superficialidade que hoje caracteriza essa
prática, dominada quase inteiramente pela retórica.
O segundo ponto está intimamente relacionado ao primeiro:
A musicalidade é própria da fala. Dizemos que os litorâneos
tendem a falar cantado, não é mesmo? E não fomos todos
litorâneos um dia? Isso sem precisar aludir ao fato da palavra ser
sempre litoral, litoral a um continente negro e desconhecido.
Quando Santo Agostinho lê para seus alunos ele ainda
destaca a importância da métrica, o lugar dos silêncios,
essas coisas. Mas eu digo ainda, porque os modernistas acabaram com a métrica.
Sabem no quê isso me fez pensar? Nos quinhentos anos de transmissão
oral da Ilíada e da Odisséia.
Costuma-se dizer que Homero foi o poeta desses épicos.
Pois bem, ele os compôs por volta de 900 a.C., cantando os feitos de
uma guerra ocorrida entre 300 e 400 anos antes. Não é o caso
de um Heródoto que esteve nos lugares cuja história nos conta.
Homero faz como Goethe ao nos contar a história de Fausto: conta uma
história que já estava aí, uma história que ele
tinha ouvido de alguém que a tinha ouvido de alguém que a tinha
ouvido... Depois dele, essa história veio passando de geração
em geração até Péricles tomar conhecimento dela
e mandar que a escrevessem, mas isso já no século IV a.C. É
nesse século, a propósito, que Sófocles escreve suas
tragédias, também incentivado por Péricles. Quer dizer,
são cerca de quinhentos anos de pessoas decorando o poema. Não
é difícil imaginar a importância da métrica para
decorar um texto deste tamanho. Vejam que de seus 24 cantos, só no
último, onde se canta o resgate de Heitor, são 805 versos para
serem decorados. E nem falamos na Odisséia. Com a possibilidade de
se registrar a palavra – Tot, o mítico inventor da escrita, estava
certo – parece que a memória foi se deslocando aos poucos para o papel,
para o livro. Mas isso não quer dizer que a métrica em si tenha
perdido seu valor. Borges nos conta ter aprendido a Ode ao Rouxinol, de Keats,
quando ainda criança, dos lábios de seu pai; ainda que não
entendesse uma palavra de inglês, a sonoridade o cativou. Nesse sentido,
queria chamar-lhes a atenção para uma palavrinha mencionada
por Guirao, a qual irá traspassar todos os textos, uma palavrinha
grega retirada por ele da Odisséia de Homero: επαοιδή. Epaoidé é
a palavra que cura. Ela precisa ser melodiosa, εμχελαδος. Essa melodia parece
ser o que nos pega. Quantas vezes nos flagramos trauteando uma melodia sem
saber bem o seu significado? Algumas melodias simplesmente nos pegam, sem
aviso e sem premeditação. Estamos as voltas com a palavra mágica,
com os conjuros, com as orações particulares a acompanhar cada
uma das comidinhas hebréias, com as diferentes liturgias, mas o que
nos interessa mesmo é alcançar a melhor forma de tocar no fantasma
de nosso analisante possibilitando-lhe um outro modo de olhar para sua realidade.
Eu certamente poderia parar por aqui. Temos material suficiente
para discutir por muito tempo. Mas não quero perder a oportunidade
aberta por Guirao ao falar das condições do bem dizer. Entendo
por aí uma preocupação com o ser do analista. Guirao
cita Aristóteles, através da sua Retórica, quando ele
insiste na necessária probidade daquele que profere as palavras eficazes.
O que quero lhes dizer é que isso eu entendo como a enunciação
de um ideal, pois infelizmente não é necessário ser
probo, quer dizer, não é preciso ser íntegro, honrado
e nem honesto para bem dizer. Se a poesia é a expressão de
uma verdade pessoal, então François Villon é prova disso.
Mesmo tendo sido um escroque, assassino e ladrão, a crítica
aponta seus poemas como os mais bem construídos em língua francesa.
Menos mal que o bem dizer da psicanálise consiste justamente em não
dizer onde está o bem.
Muito obrigado. |